Ana Lúcia, pode nos contar um pouco sobre você? Como por exemplo, como é sua surdez e deficiência visual, sua formação e etc.
Resposta: "Bem, me chamo Ana Lúcia, sou de São Paulo. Nasci surda, com perda auditiva moderada, mas demorei 4 anos para começar a falar. Minha mãe me levou a vários médicos e fiz apenas uma sessão de fonoaudiologia, porque não tínhamos condições de pagar as consultas. Mesmo assim, apesar das dificuldades em escutar, estudei em escola regular e consegui completar os estudos. Comecei a trabalhar cedo, com 15 anos de idade, e posso dizer que foi uma das fases mais difíceis que passei, porque tive que conciliar trabalho e estudo, além de driblar a minha surdez (não usava aparelhos auditivos). Foi somente aos 19 anos que consegui comprar meu primeiro aparelho auditivo, que na época para mim era uma fortuna kkkkk. Mas enfim, com o tempo consegui comprar outro aparelho para o outro ouvido, e assim minha comunicação foi melhorando.
Quanto aos problemas visuais, comecei a sentir que algo estava errado comigo aos 15 anos. Eu enxergava muito mal em lugares escuros e à noite, mas pensava que era normal... Só fui descobrir que tinha cegueira noturna aos 28 anos de idade. Eu fazia estágio de Serviço Social na ADEFAV, e foi lá que a minha supervisora explicou o que era retinose pigmentar. Fiquei perplexa, porque os sintomas correspondiam ao que eu sentia, e fui atrás de médicos especialistas em retina. A médica que me examinou confirmou que eu tinha retinose pigmentar e, sabendo do meu histórico de surdez, fechou o diagnóstico clinicamente como Síndrome de Usher. Somente em 2019, então com 54 anos de idade, fiz um teste genético que comprovou que tenho Síndrome de Usher tipo 2A."
Qual foi o impacto desse diagnóstico em sua vida pessoal e profissional?
Resposta: "Para mim, no começo, foi um choque, foi um grande impacto porque eu não sabia exatamente o que era Síndrome de Usher. Fui descobrir mais detalhes mesmo onde fazia estágio de Serviço Social, na ADEFAV.
As pessoas que conviviam comigo sabiam da minha surdez, que era fácil notar, pois eu nem sempre escutava direito. Mas eu não falava que tinha campo visual restrito e escondi isso por vários anos, tanto na faculdade quanto no trabalho e até mesmo entre amigos mais íntimos não sabiam da minha baixa visão.
Mas com o tempo, percebi que não dava mais para esconder a minha condição porque foram acontecendo vários incidentes: esbarrava nas pessoas e nas coisas, evitava sair à noite, tinha até medo de lugares escuros... Então onde eu trabalhava como diagramadora em uma editora, comecei a abrir o jogo e comuniquei à chefia sobre a minha síndrome de Usher. Depois de algum tempo, percebi que eles começaram a reduzir os trabalhos que eu dominava e também excluir outros serviços mais desafiadores e isso teve um impacto muito grande para mim, tanto que alguns anos depois resolvi aposentar.
Ana, você entrou no assunto onde eu queria chegar, que é o ambiente de trabalho. Você já se deparou com situações de discriminação ou falta de acessibilidade no mercado de trabalho? Pode compartilhar algum exemplo específico?
Resposta: "Sim, muito! Já passei por vários episódios de discriminação... Um deles foi na função em que trabalhava. Eu gostava muito de ser diagramadora, mas queria subir de função e almejava trabalhar com design na internet. Na época, eu era a única da seção que tinha formação superior, tinha feito vários cursos de web design e informática, e mesmo assim, várias vezes, foi negada a mudança da minha função. Eles não me diziam exatamente o motivo, mas sabia que, no fundo, era por causa das minhas deficiências, porque nessa mesma seção em que trabalhava, outra pessoa foi promovida para esse cargo...
Quanto à acessibilidade, é realmente muito difícil as empresas se adaptarem para pessoas com deficiências, nem todas estão preparadas para isso. Acho que o que deveria ser feito é perguntar para o funcionário PCD qual é a sua necessidade em melhorar a área de trabalho. No meu caso, tive que pedir, por exemplo, para mudar de mesa porque não era bem iluminada, o que forçava minha vista... Outra dificuldade que tive foi com os monitores... Eram pequenos, e eu igualmente fazia esforço para enxergar, ou mudava a configuração para ficar com letras grandes... E isso num monitor pequeno, imagina o trabalho que dava! rs"
Imagino a trabalheira, sim! Rs. Se você pudesse dar um conselho para as empresas sobre como promover um ambiente de trabalho mais inclusivo, qual seria?
Resposta: "Olha, em primeiro lugar, eu diria que o funcionário PCD é um funcionário como qualquer outro, merece ter respeito e ser tratado de igual para igual. Deve ter os mesmos direitos que os outros funcionários, não ser subestimado, porque às vezes o empregado PCD é bem mais esforçado que as pessoas sem deficiência. Empresas inclusivas são aquelas que não discriminam nenhum tipo de deficiência e que conseguem, pelo menos, adaptar o ambiente para elas. Às vezes, não são necessárias tantas adaptações assim: uma boa iluminação para pessoas com baixa visão, espaços com poucos móveis para cadeirantes, sinais táteis nos elevadores, sanitários e portas para cegos, ou até mesmo oferecer cursos de Libras para funcionários, para que possam se comunicar com colegas surdos. Muitos detalhes poderiam ser feitos... Esses ajustes podem mudar muito o cotidiano do PCD e tornar o ambiente agradável para todos trabalharem."
Sim, é verdade, ter um lugar agradável para trabalhar é essencial. Você acredita que as empresas estão avançando em termos de inclusão? Qual é a sua opinião a respeito?
Resposta: "Hoje eu estou aposentada, não trabalho mais, mas acredito que houve um avanço sim, apesar de muitas empresas ainda empregarem PCDs apenas para cumprir cotas... Mas existem empresas que se esforçam em ser mais inclusivas, procurando adaptar o local de trabalho para funcionários PCDs, e isso é muito positivo. É claro que isso não é uma tarefa fácil; é preciso trabalhar em todo o processo, tanto com todos os funcionários quanto com a chefia. Todos devem estar preparados e instruídos para que possam conviver bem."
Existe algum projeto ou causa que você gostaria de continuar defendendo ou apoiando, mesmo após a aposentadoria?
Resposta: "Na verdade, seria continuar com meu trabalho com o site Síndrome de Usher Brasil, que foi uma das formas que encontrei para ajudar na divulgação sobre essa rara síndrome.
Lutar por essa causa não é fácil, porque também somos incompreendidos por ter duas deficiências muito variáveis quanto ao grau de perda auditiva e visual, além de muitas vezes passarem despercebidas ou não serem corretamente diagnosticadas.
Os eventos, como os Seminários Usher e os encontros com surdocegos, também são grandes projetos que estão dando mais visibilidade a esta síndrome. Eu, você Rafa e outras pessoas com Usher nos ajudaram nessa empreitada e é, sem dúvida, um grande projeto de luta."
Há algo mais que você gostaria de compartilhar sobre sua experiência ou sobre a importância da inclusão no mercado de trabalho?
Resposta: "Gostaria de falar também que a minha experiência com o site Síndrome de Usher Brasil me permitiu criar grupos nas redes sociais como WhatsApp e Facebook. Através deles, conheci e continuo conhecendo muitas pessoas com essa condição. Sou também membro da Retina Brasil, que oferece grande suporte quanto às doenças hereditárias da retina, e sou embaixadora brasileira da organização americana Usher Coalition, onde estou aprendendo muito e interagindo com várias pessoas com Usher no mundo inteiro.
Sobre a inclusão no mercado de trabalho, seria interessante se houvessem mais cursos profissionalizantes gratuitos para PCDs, porque muitos não têm condições de pagar pelos estudos e, assim, poderiam ter oportunidades de trabalhar em cargos melhores."
"Rafa, eu não sei exatamente como expressar isso, mas a gente raramente vê PCDs ocupando cargos superiores, como chefias, por exemplo. Isso não mudou muito."
Infelizmente, Ana! Ainda há muito caminho pela frente, e isso é um desafio que precisa ser superado!
Ana, você faz diversas entrevistas com pessoas com síndrome de Usher no seu site. Olhando essas entrevistas de forma geral, você tem percebido muita discriminação no ambiente de trabalho para pessoas com Usher?
Resposta: "Sim, há muita discriminação. Tanto que a maioria procurou se aposentar mais cedo por invalidez, o que é uma pena porque eles tinham potencial para crescer. Mas alguns não trabalham mais também devido às dificuldades das deficiências... Nem sempre tiveram acessibilidade para exercer suas funções de forma digna.
Em quase todas as entrevistas, lemos sobre as dificuldades em trabalhar. Alguns conseguem, com louvor, lidar com isso de forma positiva."
Qual é o principal objetivo de realizar entrevistas com pessoas com síndrome de Usher?
Resposta: "Meu objetivo é mostrar para as pessoas com síndrome de Usher que elas não estão sozinhas; existem outras pessoas como elas, que trabalham, estudam, casam, têm filhos, etc. A maioria leva uma vida normal e é possível realizar-se e ser feliz.
Além disso, as entrevistas servem para mostrar para a sociedade que pessoas com Usher, independentemente do grau de perda auditiva ou visual, são capazes e têm potencial. Apesar das deficiências, elas são pessoas como qualquer outra e cada uma tem uma mensagem de apoio e positiva."
Ana, quero muito te agradecer pelo seu tempo e por compartilhar sua experiência de vida pessoal e profissional nesta entrevista! Sou muito grata por ter você como parceira em projetos!
Resposta: Eu é que agradeço, Rafa! Gostei muito da entrevista! Gratidão 🤩
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